Geovaneide Santos dos Reis
Graduanda, Letras/UFS
(Faz parte do grupo de pesquisa: O cômico na literatura brasileira, sob a coordenação da profª. Drª. Jacqueline Ramos.)
A pesquisa “O cômico na obra de Clarice Lispector”, estuda a presença da
comicidade nas obras da autora, atentando-se para sua funcionalidade
tanto em relação à obra quanto em relação a aspectos da cultura a que se
refere. Tomamos como base teorias de autores que tem como finalidade
o estudo sobre a natureza, procedimentos e funções do cômico. Dentre
eles, O Riso (2007) de Henri Bergson, Os Chistes e sua Relação com o
Inconsciente (1977) de Sigmund Freud e o capítulo “O Chiste” de André
Jolles (1976) em seu livro Formas simples. Então, a partir das nossas análises,
percebeu-se que a literatura também se utiliza da comicidade para
representar o mundo, nossa realidade, revelar verdade, criticar, corrigir,
libertar e até repreender.
Palavras-chave: Cômico, Clarice Lispector, contos, comicidade,
conhecimento.
Introdução
A pesquisa cientifica objetiva apresentar a comicidade em obras de Clarice Lispector, como também sua funcionalidade tanto em relação à obra quanto em relação a aspectos da cultura a que se refere. Como base para a pesquisa foram utilizadas teorias que são essenciais para o conhecimento sobre o cômico. Dentre várias teorias, utilizou-se como referência O Riso (2007) de Henri Bergson, Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente (1977) de Sigmund Freud, o capítulo “O Chiste” de André Jolles (1976) em seu livro Formas simples e o documentário Ecce Homo: o riso (1998). Para a análise foram selecionados três contos da escritora Clarice Lispector: “Via Crucis”, escolhido para apresentação no evento e análise neste artigo, e “O grande passeio”, integrantes da coletânea O primeiro beijo e outros contos (1997) e “O Corpo” integrante do livro A Via Crucis do Corpo (1998).
Iniciemos por alguns aspectos teóricos sobre o cômico. Bergson define o cômico “como o mecânico calcado no vivo”, ou seja, a comicidade ocorre quando o vivo comporta-se como uma máquina, ela é algo eminentemente social, não existe fora do âmbito da sociedade, depende de um grupo, o cômico é cultural. Ainda, segundo o autor o riso exige certa insensibilidade, algo como certa anestesia do coração. O risível é certa rigidez mecânica (se comportar mecanicamente).
O filósofo relata em sua obra que o mecanismo rígido é como um desvio da vida,
o riso é a própria correção, certo gesto social. O riso advém sempre que nossa atenção é desviada ao aspecto físico de uma pessoa, quando esteja em “causa o moral”. Bergson considera que o riso castiga os costumes, porque quando se ri de alguém, está-se rebaixando-a. Então a função do cômico, apresenta-se como algo que ridiculariza, rebaixa, reprime.
Na teoria de Sigmund Freud, aponta-se o cômico “como uma válvula de escape”, isto é, alivio de tensão, escoamento de conteúdos retidos através das manifestações do inconsciente. Ele chama de cômico, o cômico em geral e chiste, aquelas piadas, manifestações cômicas que dão acesso a conteúdos reprimidos, trazendo assim sua ideia de que o chiste está ligado ao inconsciente, como dito no supracitado. Freud, antes desse texto, escreveu outro, A interpretação dos sonhos em 1900, mostrando nele que os sonhos são manifestações do inconsciente, assim como os chistes. O autor, apresenta o cômico como algo subjetivo, que esteja vinculado a nossa atitude, como também a evocação do consciente.
No documentário Ecce homo: o riso (1998), são apresentados relatos de que o importuno,
a surpresa, as quedas, nos causam o riso. Sempre estamos sujeitos a rir. Esse documentário apresenta desde o surgimento do riso, até os dias atuais, citando, assim, vários precursores para o riso. Molière foi um dos maiores comediantes, como também, Charlie Chaplin.
Já, para Jolles, o chiste é definido como uma forma simples, ou seja, desmontar, desfazer a ética, a lógica, a linguagem, ele desmonta as próprias formas. O chiste é ainda a melhor forma de entender a disposição mental, isto é, uma energia canalizada para algum elemento, essa faz parte da nossa psicologia, atuando com a tarefa de desmontar, desfazer, desatar.
A escritora em foco, Clarice Lispector, se destaca em várias obras, sendo sua última obra A hora da estrela (1977), um romance. Suas melhores prosas se mostram nos contos de Laços de família (1960) e de A legião estrangeira (1964), como também, em obras como A maçã no escuro (1961), A paixão segundo G.H. (1961) e Água-viva (1973), os personagens, alienados e a procura de um sentido para a vida, adquirem gradativamente consciência de si mesmos e aceitam seu lugar em um universo arbitrário e interminável.
Dentre suas numerosas obras, foi explorado o romance A paixão segundo G.H., de Clarice
Lispector, que conta, através de um enredo banal, o pensar e o sentir de G.H., a protagonista–narradora que despede a empregada doméstica e decide fazer uma limpeza geral no quarto de serviço, que ela supõe imundo e repleto de inutilidades. Após recuperar-se da frustração de ter encontrado um quarto limpo e arrumado, G.H. depara-se com uma barata na porta do armário. Depois do susto, ela esmaga o inseto e decide provar seu interior branco, processando- se, então, uma revelação. G.H. sai de sua rotina civilizada e lança-se para fora do humano, reconstruindo-se a partir desse episódio. A protagonista vê sua condição de dona de casa e mãe como uma selvagem. Tem a presença do grotesco na cena crucial de A paixão segundo G.H., em que a escultora G.H. come e regurgita a barata que surge do fundo do armário, num ato ao mesmo tempo sublime e grotesco:
“Toda sacudida pelo vômito violento, que não fora sequer precedido pelo aviso de uma náusea, desiludida comigo mesma, espantada com minha falta de força de cumprir o gesto que me parecia ser o único a reunir meu corpo à minha alma” (LISPECTOR, 1998b, p. 165). Esse romance não faz muito o uso da comicidade, desse modo, não sendo selecionado como o corpus.
Os contos, por outro lado, são carregados de comicidade, sendo assim escolhido como corpus desta pesquisa. Assim, através da análise do corpus selecionado foi possível perceber que a escritora revela em suas obras, uma certa tentativa de investigar as camadas mais intensas da consciência humana na procura de compreender o sentido da existência. Através de uma aparentemente linguagem simples, Clarice mergulha numa análise psicológica do ser humano, revelando então uma permanente preocupação em alcançar a verdade escondida na aparente simplicidade das palavras. Ademais, acentua-se que na obra de Lispector pode-se entender melhor a diferença entre forma e estilo, e suas colocações da comicidade em seus textos. Observemos essa passagem de Bosi (1976) a seguir:
Há na gênese dos seus contos e romances tal exacerbação do momento interior que, a
certa altura do seu itinerário, a própria subjetividade entra em crise. O espírito, perdido no labirinto da memória e da autoanálise, reclama um novo equilíbrio. Que se fará pela recuperação do objeto. Não mais na esfera convencional de algo que existe para o eu (nível psicológico), mas na esfera da sua própria e irredutível realidade. O sujeito só “se salva” aceitando o objeto como tal; como a alma que, para todas as religiões, deve reconhecer a existência de um ser que a transcende para beber nas fontes da sua própria existência (BOSI, 1976, p. 475).
Desse modo, pela ótica estilística, ela se encontra dentre as primeiras dos escritores brasileiros, já que a mesma mantém uma percepção perspicaz do detalhe, retirando a lógica prosaica para uma construção de uma prosa poética.
Embasamento teórico
Bergson define cômico, como “o mecânico calcado no vivo”, ou seja, o cômico ocorre quando o vivo se comporta como uma máquina, é algo eminentemente social, não existe fora do âmbito do humano, depende de um grupo, o cômico é cultural.
[…]a imitação dos gestos é já risível por si mesma, mais ainda se tornará quando se aplicar a desviá-los, sem os deformar, no sentido de alguma operação mecânica, como a de serrar madeira, por exemplo, bater numa bigorna, ou puxar incansavelmente a corda de um sino imaginário. Não que a vulgaridade seja a essência do cômico (embora de certo modo faça parte dele). É, antes, que o gesto apreendido parece mais francamente maquinal quando o podemos ligar a certa operação simples, como se ele fosse mecânico de propósito (BERGSON, 1983, p.20).
O riso exige certa insensibilidade, algo como certa anestesia do coração, ele depende das relações culturais. O risível é certa rigidez mecânica, Bergson ainda fala que quando a pessoa está agindo maquinalmente, torna-se risível. Seu comportamento é um desvio em relação à flexibilidade da vida.
Bergson apresenta alguns tipos de cômico, partindo daqueles tipos que se relacionam à nossa infância, nossos brinquedos. A comédia é um brinquedo que imita a vida.
O primeiro citado pelo filósofo é o boneco de mola, reflete uma posição mecânica, porque o boneco de mola lembra o teatro de Guignol (ritmo de mola que se contrai e distende), levando o riso a aumentar. A mola moral apresentada pelo autor representa o fluxo de falas (exprimir e reprimir). A repetição de uma expressão não é risível por si mesma, causa o riso pelo jogo especial de elementos morais.
O outro brinquedo é a marionete de cordões, este leva a cena de comedias, representa
que o que há de sério na vida advém de nossa liberdade, e ocorre quando deixamos nos
dominar, controlar:
O fantoche a cordões. Inúmeras são as cenas de comédia nas quais um personagem crê
falar e agir livremente, conservando, pois, o essencial da vida, ao passo que, encarado de
certo aspecto, surge como simples brinquedo nas mãos de outro que com ele se diverte.
(BERGSON, 1983, p. 39).
Um outro tipo de cômico é denominado por Bergson de “bola de neve”, um esquema de combinação, uma bola de neve que rola e aumenta o volume ao rolar. A bola de neve, leva a processos que engrenam em processos, e o mecanismo funciona cada vez mais rápido. A bola de neve está associada a uma fileira de soldadinhos de chumbo, o qual derrubarmos um, o restante irá cair voltando ao mesmo ponto, e se fazer círculos, desviar-se, será mais risível ainda.
O autor ainda afirma que o mecanismo rígido é como um desvio da vida e o riso seria a própria correção, certo gesto social. Partindo para o teatro bufo, Bergson traz três processos do mesmo: a repetição, inversão e inferência de séries.
A repetição é vista como uma combinação de circunstâncias, que se repete em várias ocasiões, uma repetição natural que leva ao cômico. O objetivo é introduzir nos acontecimentos certa ordem matemática, conservando ao mesmo tempo o aspecto de verossimilhança. O teatro bufo trabalha o espirito do espectador. A inversão tem muita analogia com a repetição, é um “mundo às avessas”. A inversão também é vista como uma situação que se volta contra quem a criou. E por fim temos a inferência de séries, um efeito cômico cuja formula é difícil de extrair. Pertence ao mesmo tempo a duas series de fatos absolutamente independentes. Então a inferência de séries, a repetição e a inversão são um processo de mecanização.
Ao entrar no cômico por intermédio da linguagem, pode-se perceber que, no cômico, a linguagem exprime, traduz-se, de uma língua para outra sob pena, entretanto, de perder grande parte de seu vigor ao transpor-se para uma sociedade nova. Já no cômico que a linguagem cria, deve-se o efeito à estrutura da frase e à escolha das palavras. O cômico na linguagem ainda traz sua relação com o espirituoso, esse levando-nos a rir de um terceiro ou de nós mesmos.
A comicidade de palavras, leva ao deixar-se ir, por um efeito de rigidez ou de velocidade adquirida (dizer o que não se quer dizer ou fazer o que não se quer fazer). Rimos sempre que nossa atenção é desviada ao aspecto físico de uma pessoa, quando esteja em “causa o moral”.
Ainda na linguagem, as palavras com sentido físico e um sentido moral, ou seja, quando a expressão toma um sentido próprio, enquanto era empregado no figurado, se tornará cômico se ainda tiver sentido mesmo invertida a frase. O autor então parte para as três leis fundamentais do cômico na linguagem, chamadas de “a transformação cômica das proposições”, sendo elas: inversão, inferência e a transposição.
A inversão é a menos interessante, ela refere-se a inversão em frases.
A próxima é a inferência, sendo esta a que dá duas significações independentes, um jogo de palavras. Dentro da inferência ainda temos os trocadilhos, apresenta dois sentidos diferentes, mas apenas aparentemente. Por fim temos a transposição, que é a mais profunda (é para a linguagem corrente, o que a repetição é para a comédia). Possui dois tons extremos, a do Solene para o Familiar, levando a formação da paródia. A paródia define o cômico em geral pela degradação, com exageros.
O exagero fala das pequenas coisas como se fossem grandes, é uma espécie de comicidade, porém mais enfática, ou seja, que usa ênfase em sua fala ou escrita.
Na transposição tem-se a ironia e o humor, a primeira leva a fingir a acreditar precisamente o que é e a segunda descreve o que é, fingindo crer que assim que deveria ser, uma transposição do moral (valores) ao cientifico (racional).
Rimos da mecanização de algumas características. O autor, ainda nos mostra que rimos de qualquer caráter, qualquer defeito desde que ele seja enrijecido. O riso é provocado através de quando mostramos ou percebemos o caráter. Tem-se como uma das características a vaidade, que está ligada a todas as outras características, ela está ligada ao falso modesto. Então, para Bergson o riso castiga os costumes, porque quando se ri de alguém, está-se rebaixando-a. Então a função do cômico, para que serve, vem como algo que ridiculariza, rebaixa, reprime. Mas por outro lado o cômico serve para coesão do grupo, homogeneização de posições de um grupo. O autor diz que o cômico é um contraste de incongruência e uma surpresa, que segundo Kant o cômico criaria uma expectativa que acaba em nada: “O riso advém de uma expectativa que acaba subitamente em nada” (apud BERGSON, p. 43). E que o cômico ainda pode se dar pelo disfarce, que é quando um ser tenta parecer o que não é. Em Os chistes e sua relação com o inconsciente de Freud, logo no início, conta uma piada e em seguida afirma que a graça está na forma de contar. Conclusão incial que não se sustentará
até o fim. Ele separa o cômico, um estaria ligado ao inconsciente e o outro não, sendo que o que está ligado a princípio seja o chiste, tipo de piada, e o que não tem vínculo, o cômico. Freud chama de cômico, o cômico em geral e chiste, aquelas piadas, manifestações cômicas que dão acessos a conteúdos reprimidos, trazendo assim sua ideia de que o chiste está ligado ao inconsciente, como supracitado.
Algo muito importante nesse livro de Freud é a questão da linguagem, como ele disse, o inconsciente é feito de linguagem, então, ele tem que analisar o problema da linguagem, descobrindo assim que a lógica da linguagem dos sonhos é a mesma lógica da linguagem dos chistes. Sendo essa uma das conclusões do autor.
Percebe-se que o autor não consegue determinar o que é o cômico. No decorrer de sua obra, ele tenta separar cômico de chiste, mas ao final ele percebe que não há como separar os dois. Freud divide seu livro em três partes, sendo a primeira a mais importante,porque nela é onde ha análise dos chistes, tentando defini-los, trazendo hipóteses, como a serventia dos chistes, apresentado por ele que o chiste serve para que o inconsciente apresente certas coisas, e que o chiste sirva como válvula de escape.
Nesse primeiro tópico podemos analisar que Freud apresenta a função do cômico, sendo esse como uma válvula de escape, ou alivio de tensão, ou seja, a expressão de um assunto considerado como “tabu”, coisas vedadas, se daria através da piada, aliviando, assim, algo sobre o que queriam falar, mas não podiam, sendo essa a válvula de escape.
Então ele estuda o chiste por conta desse inconsciente, levando assim a sabermos o que é
cômico, não ao pé da letra, mas Freud apresenta fatos do que é o cômico. Sendo algo de um ponto de vista inteiramente subjetivo, algo que esteja vinculado a nossa atitude, como também a evocação do consciente.
O autor fala sobre os processos cômicos, como por exemplo, o cômico que advém de condensação acompanhada pela formação de um substituto, ou seja, a produção de uma palavra composta. O autor ainda traz o uso do nonsense, ou seja, o absurdo. Uma piada que não faz sentido, non = não/sem; sense = sentido.
Portanto, ao decorrer do livro, Freud tenta separar o que é cômico e o que é chiste, apresentando fatos e situações que poderiam compara-los, mas ele conclui que não dá para separar, porque um domina o outro. E que a linguagem como dito anteriormente, é fundamental para a elaboração de um chiste, porque a lógica de sua linguagem é a mesma da dos sonhos.
Vejamos, finalmente, o capitulo “O chiste” de André Jolles, o chiste é definido pelo autor
como uma forma simples, ou seja, desmontar ocorrências, desfazer a ética, a lógica, a linguagem, ele desmonta as próprias formas.
O chiste é ainda a melhor forma de entender a disposição mental, isto é, uma energia canalizada para algum elemento, essa faz parte da nossa psicologia, atuando com a tarefa de desmontar, desfazer, desatar. Os estudos das piadas retratam a realidade e, o discurso oficial reprime, censura. Para o desenvolvimento dessas piadas, utiliza-se de um elemento importante que é o duplo sentido, ou seja, palavra ou frase que tem dois sentidos diferentes.
O chiste tem como função, desmontar, desfazer a ética, a lógica, a linguagem, ele desmonta as próprias formas. O chiste ocorre através de suas transposições, suas capacidades de inverter os sentidos das coisas. Os processos que o chiste emprega são inúmeros, ele tem à disposição de todos para desatar as coisas e desfazer os nós. O cômico se contitui de um universo desfeito por inversão. Mas não se caracteriza somente pelo desate, como também pelas novas perspectivas que se atam. Se o chiste tivesse somente a função de desatar, definiria-o como uma forma dependente das outras, no entanto o cômico desmonta até mesmo as outras formas, criando novas.
Jolles também constata os tipos de chiste, sendo-os: gracejo e zombaria. O gracejo está associado aos elementos que não agride, não condena, uma libertação de espirito, um alívio de tensão, então o chiste também é visto como uma solução. Já a zombaria é agressiva, moralizante, tem a função de rebaixar, ridicularizar, dividida assim em sátira e ironia. Respectivamente, tem como objetivo condenar, rebaixar, uma forma agressiva, sendo dirigida ao objeto que é estranho, que não se faz parte. Na ironia, você participa dela, mas na mesma não há arrogância, e sim solidariedade, deixando claro a crítica, sem agredir. A ironia cômica para o autor é quando quem zomba, faz parte do que é zombado. Então, Jolles também relaciona o chiste a um alivio de tensão como Freud.
“A sátira destrói, a ironia ensina” (JOLLES, 1976, p. 211).
O autor ainda destaca a insuficiência como elemento necessário para que se possa desfazer, a qual visa corrigir o desvio, também é visto quando o particular se agrega a forma real. Contudo, Jolles, apresenta que o chiste é uma forma simples que sempre vai estar em ascensão na vida e na literatura, embora a depender da época e da cultura possa adquirir valores diferentes, mas sempre vai estar em todos os domínios.
A “via crucis” de Clarice
O conto “Via Crucis” integrante do livro O primeiro beijo e outros contos (1997), coletânea de contos da escritora Clarice Lispector, narra a história do nascimento de uma criança, filho de Maria das Dores que, mesmo casada, mantinha-se virgem mas fica grávida. Ao saber do fato, o marido pergunta-lhe: “Então eu sou São José? ”. Para cumprirem o destino que lhes é traçado, o casal parte para a fazenda de uma tia, em Minas Gerais, para que a criança nasça em um estábulo, como o filho de Deus. Maria das Dores quer evitar que seu filho siga a via crucis, por isso não lhe dá o nome de Jesus, chama-o de Emmanuel.
À vista disso já é possível perceber como o conto é carregado de comicidade, dentre eles o nome dos personagens, usado de forma irônica pelo narrador, visto que este caçoa desses nomes ao ficar se referindo aos mesmos com nomes religiosos.
Esse conto, se dá em relação ao religioso, o que nos leva a perguntar, por que os humanos riem? Para Freud, o cômico seria uma válvula de escape, por exemplo, quando se recorre às piadas para zombar da própria desgraça, visto que em situações extremamente trágicas há histórias que conseguem ser mencionadas pelo viés cômico. O que leva o homem a rir? A surpresa, o contraste, o absurdo, a ironia, a paródia, a sátira, a zombaria. Viu-se a importância do cômico como limiar que instiga o porque ri e do que se ri, e há diferentes respostas a essas perguntas. O porque rir e do que se ri despertou para que se buscasse o porquê Clarice nos faz rir com a paródia no conto “Via Crucis” em relação ao nascimento de Jesus Cristo.
Desde 1925, O. Freidenberg, em A origem da paródia, mostrava que nas civilizações arcaicas, antigas e medievais o cômico e o trágico, o ridículo e o sublime são dois aspectos complementares de uma mesma concepção de mundo e que toda visão sublime implica uma dupla paródica: Essa dualidade burlesca faz parte do próprio mecanismo do sagrado (MINOIS, 1946, p.141).
A escritora, nesse conto satiriza o texto sagrado, de forma lúdica aproximando-a do leitor
que, estimulado, quer saber o que há nesse manuscrito velho, ou seja, o que há na Bíblia. A comicidade já se encontra no início do conto, quando se tem a conversa de Maria das Dores com a ginecologista sobre ela apresentar uma gravidez sem nunca ter mantido relações sexuais com seu esposo. Dessa forma, o texto já começa carregado de absurdo, porque Maria das Dores era casada, mas nunca tinha tido relações com seu parceiro. “[…] ela diagnosticou uma suposta gravidez. –Não pode ser! Gritou Maria das Dores. – Por quê? A senhora não é casada? –Sou, mas sou virgem, meu marido nunca me tocou. Primeiro porque ele é paciente, segundo porque já é meio impotente” (LISPECTOR, 1997, p. 48). Nessa passagem, tem-se o uso do gracejo, aqui, busca-se uma fachada de racionalidade para as combinações lúdicas de palavras, a partir do estabelecimento de um sentido para elas. Ao que tudo indica trata-se do
absurdo associado ao cômico, definido por Bergson:
O absurdo, quando o encontramos na comicidade, não é, pois, um absurdo qualquer. É um absurdo determinado. Ele não cria a comicidade, antes, ele é que decorre dela. O absurdo não é a causa, mas o efeito – efeito especialíssimo, no qual se reflete a natureza especial da causa que o produz (BERGSON, 1983, p. 86).
O conto analisado faz referência a um aspecto cômico estudado por Bergson, o rebaixamento, isso porque a escritora utiliza-se do elevado rebaixando-o. Ela parodia o texto sagrado sobre nascimento de Jesus.
Lispector também faz o uso de nomes bíblicos para seus personagens, comparando-os à Maria, mãe de Jesus, mas acrescentando “das Dores”, seu esposo se autonomeia de São José, por ser pai de uma criança que segundo eles era “divina”. E por fim no menino coloca o nome de Emmanuel, que quer dizer Deus conosco. Uma representação do sagrado, do cristianismo.
Como pode ser observado nesse trecho: “Mas parecia que se desse à criança o nome de Jesus, ele seria, quando homem, crucificado. Era melhor dar-lhe o nome de Emmanuel” (LISPECTOR, 1997, p. 50). A comicidade apresenta-se quando Maria das Dores quer evitar que seu filho seja crucificado por se chamar Jesus, mas acaba por reafirmar colocando-o o nome Emmanuel, conhecido como uma das formas utilizadas para chamar Jesus Cristo. Nesse trecho e em outros que define o nome dos personagens é possível observar o uso do gracejo, pois a escritora faz combinações lúdicas de palavras, estabelecendo sentido para elas. “ São José arranjara para si um cajado” (LISPECTOR, 1997, p. 50) “São José cortou o cordão umbilical”
(LISPECTOR, 1997, p. 51) “Nasceu Emmanuel” (LISPECTOR, 1997, p. 51). Assim, segundo
Propp (1992) os nomes cômicos são um procedimento estilístico auxiliar que se aplica para reforçar o efeito cômico da situação, do caráter ou da trama. Esse autor acrescenta ainda que “[…] a exigência de verossimilhança, como uma das condições da comicidade, estende-se também aos nomes” (PROPP, 1992, p. 204). Até o próprio narrador assume esses novos nomes dos personagens.
A partir de então, o absurdo não deixa de aparecer em cada detalhe do conto, a escritora deixa claro que a personagem Maria das Dores vai acreditando ser mesmo mãe de um Messias, que de repente virou santa, preocupando-se também com seu filho, qual seria um novo Messias, mas que não nascera em vinte e cinco de dezembro, de que seus padrinhos seriam a Virgem
Maria e Cristo. “E Maria das Dores começou a acreditar em milagres. Uma vez julgou ver de pé ao seu lado a Virgem Maria que lhe sorria. Outra vez ela mesmo fez o milagre: o marido estava com uma ferida aberta na perna, Maria das Dores beijou a ferida. No dia seguinte nem marca havia.” (LISPECTOR, 1997, p. 49). “Ia à igreja todos os dias e, mesmo barriguda, ficava horas ajoelhada. Como madrinha do filho escolhera a Virgem Maria. E para padrinho o Cristo” (LISPECTOR, 1997, p. 50). A presença do absurdo associado ao exagero vai sendo apresentado no decorrer do enredo, e o absurdo é um elemento da comicidade, apresentado por um dos teóricos estudados. Bergson destaca em sua obra que “O que nos causa riso seria o absurdo encarnado numa forma concreta, um “absurdo visível” – ou ainda uma aparência de absurdo, admitida a princípio, logo corrigida – ou, melhor ainda, o que é absurdo por um lado, naturalmente explicável por outro etc.” (BERGSON, 1983, p. 86).
Seu esposo também começa a acreditar que era pai de um ser divino, se vestindo como
José, pai de Jesus, “São José arranjara para si um cajado. […] sua túnica era de estopa”
(LISPECTOR, 1997, p. 50). Em “Via Crucis”, Lispector utiliza-se da comicidade de palavras, de trocadilhos semânticos, esses presentes em várias passagens do conto, definido como um termo usado duas ou mais vezes num enunciado, e em cada uso com sentido diferente. Visto assim nessa passagem “
Quando chegar a hora, não vou gritar, vou só dizer: ai Jesus!”. Nesse trecho a autora pretendeu mostrar que Maria das Dores na hora da dor do parto de seu filho “Jesus”, ela chamaria pelo outro Jesus, o crucificado. Tanto Bergson, como Freud e Jolles, trabalham com a comicidade de palavras, sendo os trocadilhos para eles, de fato a mesma frase que parece apresentar dois sentidos independentes, mas apenas aparentemente. Há, em realidade, duas frases diferentes, compostas de palavras diferentes, que se pretende confundir entre si, tendo vantagem de produzirem o mesmo som ao ouvido.
Outro elemento presente no conto é o grotesco. Esse apresentado a partir do trecho “A tia
preparava lombinho de porco e todos comiam danadamente” (LISPECTOR, 1997, p.51). Nesse trecho o termo “danadamente” está vinculado ao demoníaco. Ainda nesse trecho tem-se o uso do grotesco, porque a bíblia condenava a glutonaria e Clarice traz a personagem como uma pessoa que comia muito. O grotesco se liga ao disforme, ao feio, ao extravagante. E a bíblia sagrado condena o homem glutão. Como pode-se observar nesses trechos: “Não estejas entre os bebedores de vinho nem entre os comilões de carne. Porque o beberrão e o comilão caem em pobreza; e a sonolência vestirá de trapos o homem” (Provérbios 23:20-21). “Mete uma faca à tua garganta, se és homem glutão” (Provérbios 23:2).
Presencia-se a contradição da história do nascimento de Jesus quando a autora destaca
que o menino de Maria das Dores vivia com força em sua barriga, que ele lhe dava pontapés. Que nasceu dando belos berros. Ao contrário da gravidez de Maria de Jesus, o crucificado. “Enquanto a barriga crescia. O feto era dinâmico: dava-lhe violentos pontapés. Ás vezes ela chamava São José para pôr a mão na sua barriga e sentir o filho vivendo com força” (LISPECTOR, 1997, p. 49).
Outro aspecto cômico encontrado no conto é o horário do nascimento do menino Emmanuel,
“Até que numa noite, às três horas da madrugada” (LISPECTOR, 1997, p. 51). Nesse trecho
é possível perceber a forma como a escritora satiriza o texto de forma irônica, pois “três
horas da madrugada” nas estórias de terror e do sobrenatural, é a hora do demônio, porque muitos acreditam que às 3 da tarde foi o horário da morte de Cristo, e esta hora tornou-se a hora simbólica de Jesus. Três da madrugada seria a hora oposta, ou seja, a hora maligna. Por fim observa-se a quebra de expectativa no final do conto, visto que, já dizia Kant: “O riso advém de uma expectativa que acaba subitamente em nada” (apud BERGSON, 1983, P. 43), essa quebra também carregada de absurdo. “Obteremos uma expressão cômica ao inserir uma ideia absurda num modelo consagrado de frase” (BERGSON, 1983, p. 54), ou seja, as fórmulas e frases estereotipadas tornam-se cômicas à medida que há inserção ou paródias a partir delas, como é o caso do texto literario analisado, em que possa ser que o Jesus de Maria das Dores não passe pela via crucis, pelo sofrimento, pela cruz como Jesus passou e como todos nós passamos. Isso porque o conto parodiado faz o uso de diversos absurdos, levando a acreditar que possa ser que o menino não passe pela via crucis. Pode-se observar na passagem abaixo:
“Não se sabe se essa criança teve que passar pela via crucis. Todos passam.” (LISPECTOR,
1997, p. 51).
Considerações finais
Para a identificação dos processos cômicos presentes nos contos, foi essencial o estudo dos três teóricos que mencionamos anteriormente, visto que o corpus analisado apresenta uma constante marca de absurdo, ironia e jogo de palavras. A autora utiliza esses procedimentos descritos pelos teóricos para, com o cômico, causar as críticas irônicas e o riso. Clarice utiliza-se nessas obras da comicidade e da ironia para descrever e criticar determinados aspectos de nossa sociedade.
Referências bibliográficas
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LISPECTOR, Clarice. O primeiro beijo e outros contos. Editor: Fernando Paixão; 2ª edição. Editora Ática: São Paulo, 1997.
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NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Editora Ática, 1989.
3 da manhã: a hora do demônio. Disponível em <http://www.assombrado.com.br/2013/09/300-da-manha-
hora-do-demonio.html>. Acesso em: 14 de junho de 2017 às 11:09.